sábado, 4 de dezembro de 2010

H

O coveiro subiu três degraus e pisou a soleira.


Os cabelos longos e negros da morta cresciam ainda, alimentados pelos ossos, varrendo o chão de todas as impurezas que lhe insultavam o andar.

Com a morta nos braços, o coveiro abriu o mais que pode os seus grandes olhos infectados. E quando finalmente a deitou sobre o lado virgem da cama, cobrindo metade da morte com um lençol velho e amarrotado, disse para si mesmo:

- Não posso coçá-los. Tenho comichão, mas não posso coçá-los. Se os coçar posso perdê-los.

Ainda vestido e calçado, deitou-se ao seu lado. Afogou-lhe os cabelos com a ponta dos dedos. Aproximou o nariz mal treinado para odores mais intímos a uma das axilas recém-barbeadas da morta. Os seios destapados, gelados e duros, relampejavam no escuro como duas laranjas cobertas de geada. E foi nesse preciso instante - enquanto cheirava o doce e fixava as laranjas - que uma sensação já esquecida e apressada começou a possuir-lhe todo o corpo: ela estava nua, dura, e indefesa ao seu lado; ao contrário, o sangue do coveiro, fervente, revolto e espesso, mostrava-se vivo e confluía todo num trânsito desordenado, a uma só voz, em direcção à mesma artéria, para inflamar o mesmo músculo.

Com uma enorme erecção dentro das calças o coveiro constatou:

-É isto afinal o mundo.

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